A falta de palavras

Caro amigo,

Estou sentado no trabalho vendo o tempo passar, sentindo dores nas mãos, cotovelos e costas graças à cadeira desconfortável. As pessoas da empresa conversam de forma exaltada na sala ao lado, conjeturando sobre a infância no passado, a política atual e cenários pessimistas para o futuro. Presenciei a discussão em seu início, mas logo saí de fininho por não ter muito o que dizer sobre as temáticas.

Minha incapacidade de conversar sobre qualquer assunto sempre foi uma das características que mais odiei em mim mesmo. Passei tantos anos querendo discursar frente aos outros e participar de conversas animadas que, agora, só consigo pensar em tamanho sofrimento gerado por tal perda de tempo.

A queda do protagonista

As cortinas da história seriam abertas em uma noite fria de dezembro, descortinando uma casa escura e lúgubre onde uma chaminé despejava fumaça negra pelo céu. Seu interior escondia o protagonista, de pele morena, olhos observadores, cabelo crespo e uma boca grande e vermelha. Próximo à data de partida para longe, com as costas pesadas pelos 30 anos recém completos, ele estaria amargurado com a vida e o mundo, sentindo pelo corpo os efeitos de uma semana incessante usando todos os tipos de drogas possíveis.



Peça 1 - A família excêntrica da cidade

O quebra-cabeça de Joaquim da Costa
Peça 1: A família excêntrica da cidade


Muito tenho a contar sobre minha infância, passada na cidade de Luz, no interior de Minas Gerais. Em um município com menos de 20 mil habitantes, onde nada acontece, as pessoas tendem a ser caricaturas de si mesmas e vivem suas vidas ao sabor dos dias, dedicadas a colecionar posses inúteis e sem se importar muito com o resto do mundo. Mas ao contrário de meus conterrâneos, desde cedo aprendi a me preocupar com outras questões além da material – e iria me preocupar mais do que devia, aliás.

Assim como toda cidade interiorana, Luz guardava dois lados distintos de uma mesma moeda. Por um lado, era o paraíso por seu silêncio, segurança e tranquilidade, por suas ruas desprovidas do trânsito infernal das capitais e por oferecer a possibilidade de sentar do lado de fora de casa, em um banco feito de tronco de árvore cortado, e conversar por horas com os vizinhos; por outro, era o inferno por seu silêncio constante, por suas ruas desprovidas de qualquer atrativo cultural e pela impossibilidade de sentar do lado de fora de casa sem ser importunado pelos vizinhos. É por isso que me apaixonei imediatamente pelo anonimato proporcionado pela cidade grande quando finalmente deixei Luz.

A chegada do jovem

Querido amigo,

Muitos meses se passaram desde minhas últimas palavras. Por anos, sua presença foi o remédio para um coração doente e um abraço apertado para a solidão, sendo impossível imaginar sequer a possibilidade de deixa-lo de lado. Mas assim que a temporada de tranquilidade chegou, as folhas murchas e doentes voaram para longe e percebi que havia afastado o ombro amigo que tanto acalentou meus dias. Por essa e por todas as falhas, peço desculpas.

Apesar de ter percorrido dias tranquilos e ensolarados, estaria mentindo se dissesse que nos últimos meses não tropecei em pedras, tanto britas quanto monólitos. A verdade é que percorri um caminho trilhado por infortúnios, pela vontade de desaparecer, de me machucar e pela consciência de que tudo estava perdido. 


Um orgasmo com “Elogio da Madrasta”

Certa vez, Kafka disse a um amigo: "No fim das contas, penso que devemos ler somente livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos ao trabalho de lê-lo?”. Obras clichês nos confortam, mas sem aquelas que nos incomodam e nos fazem pensar, perdem seu caráter primordial. Mario Vargas Llosa, escritor peruano ganhador do Nobel de Literatura, convida os leitores sempre ao raciocínio e à reflexão, com livros como “Travessuras da Menina Má” e “Pantaleão e as Visitadoras”. Já em “Elogio da Madrasta”, o autor mescla o pensamento crítico ao incômodo, causando asco, assombro e, principalmente, prazer.

O terror ausente em “O Menino que Desenhava Monstros”

Para um bom escritor de histórias de terror, meia palavra basta para assustar os leitores. Quando a narrativa une crianças, monstros e pesadelos infantis, em um cenário paradisíaco com casas de praia, neve abundante e segredos à espreita, a escrita encontra as peças certas para superar expectativas. Mas sem a condução adequada, esses elementos se perdem no desenrolar da narrativa e deixam de fazer sentido. “O Menino que Desenhava Monstros”, de Keith Donohue, é a prova de que histórias de terror não são tão fáceis de criar.

Em uma pequena cidade dos Estados Unidos, Jack Peter, conhecido como Jip, é um garoto de 10 anos diagnosticado com Síndrome de Asperger, o que o faz temer sair de casa e ter contato físico ou interagir com outras pessoas. Como revela o próprio título do livro, Jip aproveita seus dias desenhando monstros assustadores, mas a brincadeira não é tão inofensiva como é para outras crianças. Quando seres estranhos começam a rondar pela vizinhança, assemelhando-se às criaturas desenhadas por Jip, seus pais passam a desconfiar de que os esboços do filho podem não ser tão inocentes quanto aparentam.


O pessegueiro que dava maçãs

Era uma vez um pessegueiro, pessegueiro como todos os outros do mundo. Flores roxas, raízes curtas e uma grande satisfação por dar frutos. Tudo ia bem até o dia em que ouviu sobre o empoderamento arbóreo, decidindo então romper com as amarras das leis da natureza. Aquele pessegueiro queria ser livre para fazer o que quisesse, e em uma manhã de sábado começou a dar maçãs.

A primeira maçã nasceu a partir de uma flor azul-anil, tornando-se grande, vermelha e suculenta. Poderia ser a herdeira de uma prole brilhante, mas era a ovelha negra da família: sentia tanto horror de ser filha de um pessegueiro que dava maçãs que preferia a morte a estar ligada aos galhos maternos. Ao avistar uma lagarta subindo o tronco lentamente, ficou feliz pela possibilidade de ser devorada.